quarta-feira, 9 de julho de 2008

Na Tal Noite

Já tinham caminhado por léguas e léguas. O acampamento não se avistava. A lua banhava as areias do deserto como a um mar de prata.
Samir, o xeque que estava disfarçado de camponês para sua segurança, guiava a pequena caravana junto com Malik, seu eterno companheiro. Ao longo da sua caminhada já tinham perdido vidas e os camelos já haviam perdido quase todas as suas forças. Até que, finalmente, avistaram o Oásis de Prata. Já faltava pouco até ao acampamento desconhecido do xeque, usado aquando do perigo de conspirações contra os governantes. Não aguentavam enfrentar mais uma noite do deserto sem descanso. Decidiram ficar ali, até que todos se sentissem melhor e os camelos recuperassem as suas forças. Samir era até ao momento o xeque mais honesto e humano de todos, mas nada impedia os conflitos antigos.
Nessa noite preferiu montar a sua tenda afastada das restantes; precisava de paz, de se isolar e esquecer tudo o que se passava à sua volta. Mas nessa noite, algo estava diferente; algo, não, alguém. Radija, secreta paixão do xeque, sentia que apenas ela podia apaziguar Samir, e embora sua paixão fosse apenas um sussurro entre os loucos, não podia vê-lo assim.
Quando a lua ia alta, saiu de sua tenda e foi ter com ele. Samir estava pensativo no canto da sua tenda, ao ver Radija, esta com o medo de ser vista espelhado nos seus olhos, algo no seu corpo estremeceu. Vê-la assim fê-lo perceber que o que a sua alma lhe pedia não era isolamento, fuga da realidade. Era Radija.
Nessa noite Samir esqueceu-se de todos os conflitos. Apenas queria agarrar um pouco de paz e felicidade. Sob a lua cheia, nessa noite de prata, barreiras foram quebradas. Não iriam mais esconder o que lhes dava vida. Embora ainda não o soubessem, nessa noite o destino de um reino foi traçado.

A avó, a Cidade e o Semáforo

Se não fosse aquele amável semáforo, o que seria dela?
Todos os dias, a avó se “aperaltava” por volta das 4 horas da tarde.Calça azul escura, casaquinho com pele de coelho na gola, sapatos de salto baixo (que as pernas já não são o que eram…); pó-de-arroz na cara, rouge nas bochechinhas e um baton bem vermelhinho. Por detrás duns óculos de aros dourados, espreitavam uns olhinhos azuis muito vivos e brilhantes. Como remate uma boina verde descaída sobre a orelha direita.
Às cinco, as amigas esperavam por ela na “Brasileira”. Às cinco e meia, os dois netos saíam do colégio e passavam pela pastelaria para lhe dar um beijinho.
A casa da avó não ficava longe da “Brasileira”, mas o trânsito era tão intenso e os semáforos faziam-lhe muita confusão, sempre mudando de cor…
A sua sorte foi o tal, o simpático, o semáforo da sua rua…
Um dia, ela ia pôr o pé fora do passeio (distraída), quando ouviu um aflitivo: - “Psssst…Psssst…”! Olhou e, era o semáforo que falava com ela: -“Avó, não pode! Não vê que estou verde para os carros e vai ser atropelada?”
Ficou tão nervosa e atordoada que ele (o semáforo), até lhe deu uma pancadinha nas costas para a acalmar.
- Ó avó – disse ele – passe aqui o braço à minha volta e leve-me consigo!
A avó ainda ia começar a dizer que ele devia ser muito pesado mas, pasmada, verificou que o semáforo era leve como uma pena.
E lá foram!
Agora já não é espanto para ninguém. De há uns tempos para cá, nas ruas perto da "Brasileira”, há uma senhora já idosa, que por volta das 4 horas da tarde, atravessa calmamente e em segurança ruas e avenidas.
Pudera! Leva com ela um amável semáforo de luz vermelha permanentemente acesa.
Os carros param e os condutores com um sorriso de espantosa compreensão, fazem-lhe um amigável aceno.
E pronto! A avó lancha com as amigas, recebe um beijinho dos netos e mais tarde voltará para casa.
Encostado à cadeira do Fernando Pessoa, bocejando piscadelas intermitentes de luz amarela, lá está o semáforo à sua espera.
E por força do hábito, o Poeta, na sua cabeça de estátua vai versejando:
“Vomitando amarelos
Na mesa do meu café
Não é bicho nem é homem
Que diabo é que isto é???”

Sofia Santos (feito com auxílio)