quinta-feira, 13 de maio de 2010

O Meu "Bichinho"

Acabei de ler um livro. Estou deitada na cama, de barriga para cima, e tenho vontade de escrever, mas não sei o quê. Olho para o tecto imaculadamente branco, desinfectado e sem uma única mancha, mas depressa mudo o olhar para a minha parede roxa. Que estupidez. No que é que pensara quando a pintei desta cor? Oiço as minhas irmãs a falar. Será que nunca se calam? Já estou farta das suas conversas fúteis sobre coisas de crianças.
De repente a Ana entra pelo meu quarto e puxa-me pelo braço, deve querer que brinque com ela. Não sinto o meu braço nem o seu toque, deve ser dos comprimidos. Prometera à minha mãe, mas não os consigo deixar. Depressa este pensamento desaparece da minha mente.
Ela quer brincar às Barbies, para variar. Mas hoje ela não está bem. Está outra vez com aquela respiração forçada, não pára de tremer nem de lacrimejar. Dava tudo para ser eu a ter estes sintomas. No início tudo é pior. Eu sou a Barbie loira e ela é a morena. Não vamos brincar às casinhas, como sempre, vamos brincar aos hospitais.
Nesse momento não pude evitar, sai da sala a correr e fui a chorar para o meu quarto. Depois de todos aqueles anos, passados numa sala branca, vazia e sozinha, ainda continuo nervosa sempre que me falam em hospitais e médicos. Não quero que ela sofra tudo aquilo que eu sofri. Não quero que ela passe pelo mesmo que eu passei.
Amo-a tanto. Porque é que a vida é assim? Mal ela nasceu, teve que ser colocada numa sala de cuidados intensivos, tal como eu. Mão quero que ela passe a sua infância num hospital, rodeada de gente que não conhece, de sorrisos falsos, e pessoas que digam que ela vai melhorar... Não quero que ela perca os desfiles de Carnaval da escola, só porque tem que ir a uma consulta ou porque está com uma crise. Não quero que ela seja excluída e gozada porque passa tanto tempo sozinho no hospital para não conseguir lidar com pessoas.
Fiz o meu primeiro amigo aos nove anos. E não quero que ela passe nove anos da sua vida sozinha, sem ter quem a apoie e a ajude a carregar este fardo.
Porque é que o meu “bichinho” tem o mesmo que eu?
Ela entrou no quarto e abraçou-me. Amo-a tanto. É tão bonita e tão inteligente. Só tem três anos e já sabe contar até dez; adoro as trancinhas que a minha mãe lhe faz, dão-lhe um ar de bonequinha de trapos.
Ela está a tentar consolar-me. Olho para a sua mãozinha, que continua a tremer, e meto-a na boca. Ela odeia quando faço isso, e por isso foge aos berros para ao pé da mãe a dizer que eu lhe comi a mão.
Paro de chorar e penso: ela não vai passar por aquilo que eu passei. Tem-me a mim e eu nunca a irei abandonar. Não voltarei a cometer os mesmos erros que cometi no passado com a Alicia.
Não vejo a Ana como uma irmã. Vejo-a como se fosse minha filha, ou uma parte muito importante de mim e, por isso, mimo-a demasiado. De certa forma, uso-a para compensar o afecto que não tive quando era pequena e para compensar o tempo que não passei com a Alicia, e com os meus pais, e o meu erro custou a nossa relação de irmãs.
Apesar de não o demonstrar, eu sei que o meu pai sofre muito com as nossas “particularidades”. Não gosto de lhe chamar doença, faz-me pensar em todas aquelas crianças cinzentas que partilhavam o quarto de hospital comigo.
Dediquei-me tanto à saúde da minha irmã, que acabei por esquecer a minha e agora, passados cinco anos sem fazer os tratamentos, vou ter que voltar a fazer tudo de novo e passar por tudo q que passei antes: os mesmos testes, os mesmos desconhecidos com sorrisos falsos, as mesmas falsas esperanças e as mesmas noites passadas em claro, agarrada ao omron CX3 para conseguir sobreviver a mais um dia “normal”.
Mas não me importo porque agora não me vou deixar levar pela medicação e pelos maus resultados dos exames. Já não vou sofrer com antes porque sei que quando chegar a casa o meu “bichinho” estará á minha espera.

Flávia; 11º D